segunda-feira, 29 de junho de 2009

Artigo: Conversas de cozinha

POR FLÁVIO TAVARES*

O presidente do Supremo Tribunal, Gilmar Mendes, entende que os jornalistas e os cozinheiros são a mesma coisa. Disse ele exatamente isso, dias atrás, quando o STF aboliu a exigência de diploma para o exercício do jornalismo. Afirmou ele que qualquer pessoa pode ser “chef” de cozinha e que idêntica situação se aplica ao jornalismo.

Quando a TV nos mostrou o ministro Gilmar proferindo essa frase, ao ler seu voto no tribunal, senti no ar o odor da sabedoria do Conselheiro Acácio. Esse personagem de O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, passou à história como representação da obviedade medíocre que, em público, tem a empáfia do incontestável sabichão. A ironia retrata o setor dominante da sociedade portuguesa do século 19 e daí surgiu o termo “acaciano”. Hoje, os jovens dizem “óbvio ululante”, copiando o sentido do termo de Eça.

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A comparação do presidente do STF é estapafúrdia. Mesmo sem o dizer, o tribunal considerou o jornalismo profissão “desprezível”, dessas que não exigem formação nem conhecimento. Não tomou em conta que a informação forma a opinião pública e que, a partir daí, surgem as linhas de ação da sociedade.

No entendimento do tribunal, descrever ou analisar um acontecimento seria como se na cozinha – para chegar a um arroz de carreteiro – bastasse misturar arroz e carne, uma pitada de sal, meio dente de alho e um pingo de azeite, levando ao fogo. Qual o sabor desse “carreteiro” a esmo? Também a culinária exige engenho e arte!

Desconhece o ministro do STF as escolas superiores de culinária, mais exigentes com seus alunos do que boa parte das nossas faculdades de Direito. A mais famosa, a École de Lausanne, na Suíça, funciona desde 1893 e, lá, química e biologia são fundamentais. Na França, a École de Haut Gastronomie do Hotel Ritz de Paris ou a de Lyon têm prestígio similar à Universidade de Sorbonne. Nos EUA, o exigente Culinary Institute of America tem sedes em Nova York, na Califórnia e no Texas. Entre nós, a escola de Gramado e as do Senac espalhadas pelo país são de nível médio, mas dão à cozinha a dignidade de profissão.

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Assim, o acaciano argumento do ministro de que qualquer um pode ser “chef” de cozinha, e, por isso, não há por que formar jornalistas, não vale como tese de argumentação.

Tampouco vale sua ideia de que a função de jornalista – diferente do médico, engenheiro, advogado ou juiz – “não expõe a risco terceiros, em caso de erro”. Indago: quem escreva sem metodologia, sem fundamentar-se em pesquisa, observação e análise, transmitindo, assim, uma ideia equivocada sobre algo sério, não ocasiona dano à coletividade?

Pode-se considerar irrelevante o ato de informar? Será irrelevante a opinião pública?

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Exerci atividades em jornal, rádio e TV no Brasil, México, Argentina e na Europa desde 1955. Formei-me em Direito na PUC, em Porto Alegre, e cursei Biologia na UFRGS. Não tenho diploma de jornalista, só registro profissional. Em 1963, integrei o grupo da Universidade de Brasília que criou a Faculdade de Comunicação de Massas, extinta em 1965 pela ditadura, pois “massas” era termo “subversivo”.

Sou crítico do atual currículo e metodologia das faculdades de Comunicação. Boa parte delas são “acacianas”, com balofa pompa, em que ditam regras especialistas que jamais entraram num jornal, rádio ou TV.

Por isso, sinto-me à vontade para discordar da decisão do Supremo ao abolir a exigência de curso superior de Jornalismo. Mesmo deficientes, as escolas de Jornalismo conseguem dar rumos e os talentosos aparecem.

Sem exigência de diploma, as escolas atuais tendem a desaparecer, com o risco de que, amanhã, jornalismo vire conversa de cozinha.


*Jornalista e escritor

[artigo publicado originalmente aqui]

Um comentário:

J disse...

Bom, só posso dizer que sou um desastre na cozinha! Hehehe...

Eu entendo que existem ótimos profissionais por aí que nunca passaram por uma faculdade. Entendo, respeito e admiro! Mas daí a "dizer que qualquer um" pode ser jornalista é demais! Mesmo as escolas de comunicação precisando de uma reforma, pra mim, particularmente, foram fundamentais no meu crescimento pessoal e profissional!