Ao repelir a política, as manifestações contra a corrupção jogam uma cortina de fumaça no problema real e não incidem sobre as disputas em curso que podem atacar a farra nos cofres públicos. E recebem amplo destaque de uma mídia que não está muito interessada em desvendar as causas da corrupção.
Gilberto Maringoni
As comemorações de Sete de Setembro foram marcadas, em meia centena de cidades brasileiras, por protestos contra a corrupção. É algo muito positivo. Ninguém tem de se conformar com os constantes roubos e desvios de verba que fragilizam os orçamentos públicos e fazem a festa de dirigentes políticos, altos funcionários e empresários amigos. Corrupção é um tema incendiário. Provoca indignação, raiva e um sentimento de apodrecimento generalizado das instituições políticas.
No entanto, as manifestações foram frustrantes.
Baixa adesão
Convocadas pela internet, em especial pelas redes sociais, os protestos tiveram pouca adesão em relação às expectativas dos ativistas virtuais. Em Brasília, eram esperadas 26 mil pessoas que confirmaram participação via Facebook. Os números divergem. O jornal O Estado de S. Paulo fala na participação de 25 mil, a Folha destaca a adesão de 12 mil e André Barrocal, aqui na Carta Maior, aponta que ,em seu início, o protesto reunia duas mil pessoas. Em São Paulo, das 21 mil aguardadas, apenas 700 apareceram para se manifestar na avenida Paulista.
Não se propõe aqui discutir a convocação de eventos coletivos através de laptops, smartphones, tablets e computadores de mesa.
O problema principal das marchas não é a baixa adesão, mas a diretriz que têm adotado.
Ativistas do PT, do PSDB, do PSOL, do PSTU e do PCdoB que tentaram abrir faixas e bandeiras de suas agremiações foram hostilizados. Alguns dos incentivadores das passeatas alegam que isso macularia seu tom apartidário. Há um viés nesse tipo de movimento, de considerar a corrupção algo inerente ao mundo político. Bingo! Se o caso é esse, neguemos a política!
Aí os problemas se escancaram.
Udenismo
As campanhas pela lisura no trato da coisa pública, como se falava em outros tempos, têm história no Brasil. É uma bandeira social mais do que justa. Mas em várias ocasiões foram desfraldadas pela direita, que sempre tentou dar ao problema uma conotação apenas moralista e não como parte das disputas de interesses na sociedade e da influência que grupos empresariais têm junto ao poder político.
A União Democrática nacional (UDN), por exemplo, partido conservador existente entre 1945 e 1964, notabilizou tanto a prática, que o termo “udenismo” passou a classificar o moralismo estéril contra a corrupção.
Descolados do mundo real, roubos, desvios, favorecimentos e comportamentos assemelhados viram uma questão da honestidade pessoal de cada um, da existência ou não de homens e mulheres de bem, lastreados em sólidos valores morais na gestão do Estado. Há uma simplificação quase infantil nisso e algumas decorrências perversas.
A simplificação está em se dividir o mundo entre pessoas de bem e gente do mal, como nos filmes de aventura. As decorrências estão, em primeiro lugar, em achar que a corrupção é um problema dos indivíduos que estão a cargo dos negócios do Estado, algo de natureza privada. E segundo, a corrupção passa a ser visto como efeito sem causa, uma coisa ligada à metafísica. Existe o político que se vende, mas não existe comprador ou corruptor. O empreiteiro ou banqueiro que azeitou engrenagens da máquina pública com dinheiro farto raramente aparece. Se aparece, não é indiciado. Nessa querela, vence o melhor. O melhor advogado, geralmente o mais caro.
O trato moralizante no combate à corrupção simplifica o problema. Trata desvios como questões de foro íntimo e do caráter de cada um. Para combater a corrupção não seria necessário mudar nada. Apenas trocar as pessoas desonestas por indivíduos honestos e botar os corruptos na cadeia. O mundo como ele é, as desigualdades sociais, as relações de poder e tudo o mais podem seguir adiante.
Público e privado
O corruptor, na maioria dos casos, não faz parte da esfera pública, mas da vida empresarial, logo privada. Como dinheiro privado é da conta de cada um – não se pergunte de onde veio – não há nada a condenar. Daí os raríssimos casos de empresários e banqueiros julgados por terem participado de esquemas suspeitos envolvendo o poder público.
Há uma lógica liberal nisso tudo. A corrupção no aparelho de Estado é condenada, mas sua equivalente no mundo privado, não. É bom lembrar que um dos argumentos para a desbragada venda de estatais nos anos 1990 era o fato de elas serem foco de corrupção, o que, deduzia-se, não ocorreria em empresas privadas, movidas pela eficiência e busca de resultados.
Na dinâmica simplista, a corrupção é algo característico dos “políticos” e própria do Estado. Quanto menos “políticos” e quanto menos Estado, menos corrupção.
Assim, nada mais lógico que partidos – organismos “políticos” próprios para a disputa do poder de Estado – sejam expulsos das marchas. É bom sempre lembrar que uma das ideias disseminadas na época do golpe de 1964 foi a de que colocar as forças armadas no comando do governo evitaria sua contaminação pela política e pelos “políticos”.
Financiamento privado
O principal fator de corrupção na área pública reside no financiamento privado de campanhas. O funcionamento básico é conhecido: empresas (bancos, empreiteiras, agências de publicidade e outras que prestem serviços ou forneçam materiais ao Estado) fazem polpudas doações a candidatos antes das eleições. Estes, eleitos, devolvem o favor na forma de vultosos contratos, que quase sempre demandam aditamentos e complementações orçamentárias. Muitas vezes, um administrador sequer precisa fazer planos de governo ou de investimentos. As empresas já apresentam projetos, que são materializados em obras de infraestrutura de duvidosa necessidade ou inexplicáveis alocações de recursos.
Alguns dos que mais vociferam contra a corrupção – imprensa, empresários e políticos conservadores – são contra o financiamento público de campanha. Seria uma medida saneadora. A alegação é que dinheiro público não pode alimentar gastança de candidatos.
Trata-se de uma cortina de fumaça. O financiamento público, além de representar um gasto menor diante das negociatas viabilizadas pela troca de favores entre empresas e governos, estabeleceria o fim das campanhas milionárias e a disparidade que leva os mais ricos a terem melhores chances nas disputas. Seria também o fim do caixa 2 e dos “recursos não contabilizados”.
Rejeição no Senado
Como se sabe, O PL 268, que estabelecia o financiamento público foi rejeitado no final de agosto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado Federal. Os que impediram a tramitação da matéria são os senadores Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP), Pedro Taques (PDT-MT), Francisco Dornelles (PP-RJ), Sérgio Petecão (PMN-AC), Alvaro Dias (PSDB-PR), Demóstenes Torres (DEM-GO), Armando Monteiro (PTB-PE), Ciro Nogueira (PP-PI) e Flexa Ribeiro (PSDB-PA). São alguns dos mais alardeiam casos de corrupção existentes no governo. Continuarão a demonstrar indignação nas telas de TV e páginas de jornais. Mas se opuseram à criação de um mecanismo que teria consequências devastadoras contra a promiscuidade público-privada (PPP) na administração pública. Não resolveria o problema, mas seria um bom começo.
Tal comportamento encaixa-se perfeitamente ao tom despolitizado das marchas do Dia da Pátria. Desmembra-se o efeito da causa, faz-se muita espuma e daí nada.
Ao repelir a política, as manifestações jogam uma cortina de fumaça no problema real e não incidem sobre as disputas em curso que podem atacar a farra nos cofres públicos. E recebem amplo destaque de uma mídia que não está muito interessada em desvendar as causas da corrupção.
Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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