quarta-feira, 1 de julho de 2009

Quem contrataria Gilmar Mendes para dirigir um jornal?

Do Observatório da Imprensa:

ALBERTO DINES


Mesmo os inimigos do ministro-presidente do STF Gilmar Mendes são obrigados a reconhecer o seu vasto saber jurídico, sua cultura, sua capacidade de expressar-se com tanta clareza e elegância como também seu conhecimento do idioma alemão.

Diante da sua obsessão em demonstrar que o jornalismo não é uma profissão e, portanto, não precisa ser regulamentado, este Observador sente a necessidade de repetir, ampliar e reformular a pergunta dirigida ao professor e ex-ombudsman da Folha e do iG Mario Vitor Santos na edição da semana passada (23/6) do Observatório da Imprensa na TV:

– Você contrataria o presidente do STF para dirigir o seu jornal?

Sua Excelência certamente perdoará a provocação cuja única finalidade é oxigenar e animar um debate que ao longo dos últimos 24 anos serviu para vocalizar apenas um lado da questão – o dos empresários.

A querela a respeito do diploma, ou melhor, do fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício do jornalismo, é secundária. Outra deve antecedê-la: jornalismo é profissão, ocupação, ofício, ferramenta de trabalho? Ou, além disso, também é missão, tal como a de um magistrado, treinado para destrinchar a dialética dos códigos, administrar a justiça e ser justo?

Ensinar e aprender

Este Observador jamais contrataria o ministro Gilmar Mendes para dirigir qualquer veículo jornalístico apesar do seu imbatível curriculum jurídico. Mas entregaria o seu hipotético jornal a um profissional diplomado em jornalismo, de preferência com uma pós-graduação profissionalizante, pelo menos 25 anos de experiência em redações e, principalmente, capacitado para assumir o papel de mediador, questionador e agente das transformações.

No seu arrazoado contra o diploma e contra a especificidade da profissão de jornalista, o ministro Gilmar Mendes esquece o seu notório domínio do idioma alemão. Não lembrou que Zeitung, jornal, deriva da raiz Zeit, tempo. Jornalismo em português ou Journalisme em francês (de Jour, dia, jornada) são atividades cruciais numa sociedade porque lidam com a passagem do Tempo. Uma sociedade desatenta para as inevitáveis mudanças está perdida, torna-se apática ou desarvorada.

Jornalistas marcam o tempo, verdadeiros ritmistas, mas ao contrário dos relojoeiros lidam com um tempo que não jorra contínuo. O tempo jornalístico é periódico, marcado pelas sucessivas edições, condicionado para a complexa tarefa de sintetizar o acontecido no período (daí periodismo em espanhol).

Passar ao leitor a sensação de que é testemunha e participante de um amplo processo exige conhecimentos teóricos, técnicos e também uma disposição instintiva para pressentir o que é novo e o que importa. Escritores raramente retomam seus textos depois de impressos. O ponto final é ponto final mesmo.

Jornalistas são treinados para a infindável tarefa de reescrever-se continuamente. Este treinamento começa nos bancos das escolas de jornalismo. Nas redações não há tempo para filosofar. Nem há tempo para olhar-se no espelho e reclamar. O mundo para os jornalistas é verdadeiramente redondo, rotativo, rotativa.

É a tal unendliche Aufgabe (tarefa infindável), ministro Gilmar Mendes, citada por Kant. Esta tarefa não é para qualquer um. Não é fruto de um estalo, golpe de sorte – precisa ser ensinada e aprendida. A perseguição contínua de uma tarefa é em si, uma atitude claramente profissional.

Obra de jornalistas

O relatório do ministro Gilmar Mendes estende-se por 91 páginas sobre a profissão de jornalista e, mesmo sintetizado, jamais seria entendido pelos leitores de jornal, mesmo de um quality paper. Há nele uma ironia que roça à presunção. É um antijornalismo em estado primitivo. Ao comparar jornalistas aos chefes de cozinha o ministro Mendes tenta fazer blague. Nós jornalistas não gozamos as togas usadas nos tribunais, nem mesmo as ridículas perucas dos magistrados britânicos. Respeitamos as tradições, somos os primeiros a perceber quando se tornam obsoletas.

O ministro, porém, ignora que sem jornalismo e sem jornalistas os historiadores teriam que inventar fatos. Ou contentar-se com documentos áridos, insossos, muitas vezes truncados e às vezes manipulados para parecerem verdadeiros. A história moderna, a crônica dos últimos 400 anos, deve muito aos profissionais do jornalismo.

Uma hemeroteca, Excelência, é o panteão da humanidade. Obra construída majoritariamente por jornalistas. Este Observador não contrataria um advogado ou mesmo um jurista renomado para montar uma coleção de jornais. Nem mesmo para editá-los.

Nenhum comentário: